segunda-feira, 4 de abril de 2011

Gadgets de sangue

“Telefones, câmeras e outros eletrônicos são fabricados com metais da República Democrática do Congo, onde a extração mineral sustenta um dos conflitos mais violentos do mundo

Se você comprou um celular ou um iPod de 1996 para cá, pode ter ajudado a financiar uma guerra civil. Desde essa data, o leste da República Democrática do Congo – região que abastece grandes empresas de eletrônicos com quatro minérios essenciais para o funcionamento de qualquer gadget – é tomado por grupos armados rebeldes. Essas milícias, envolvidas num dos piores conflitos da nossa época, se sustentam com dinheiro do contrabando desses minerais.

Só em 2009, os grupos armados congoleses receberam US$ 185 milhões com a mineração ilegal, de acordo com estimativa da organização americana de direitos humanos Enough Project. ‘Os valores podem flutuar, mas certamente são suficientes para perpetuar a guerra, comprar armas e pagar soldados’, afirma Aaron Hall, analista de política da entidade. Ou seja, adquirir algum aparelho eletrônico está indiretamente relacionado à manutenção do conflito mais violento do planeta após a Segunda Guerra Mundial. Esqueça o Afeganistão ou o Iraque. Nos últimos 15 anos, os confrontos em terras congolesas mataram 5,5 milhões de pessoas e mais de 200 mil mulheres foram estupradas, de acordo com estudo da ONG International Rescue Committee. Formalmente, a guerra terminou em 2003, mas as batalhas, turbinadas pelas reservas minerais do país, continuam entre os grupos armados que dominam e mantêm as minas.

Os quatro minérios envolvidos no conflito são o tântalo, o tungstênio, o estanho e, em menores quantidades, o ouro. O tântalo serve para armazenar energia em smartphones e computadores. O tungstênio é usado para fazer os celulares vibrarem e o estanho entra na solda de circuitos. O ouro melhora a conectividade desses equipamentos.

Pedras Fantasmas

Desde 2008, a Enough Project tenta convencer os gigantes da tecnologia a desistir de comprar matéria-prima de origem obscura. Uma tarefa ingrata já que os minérios congoleses custam de 30% a 50% menos que a média do mercado. Isso é em parte explicado pela mão de obra barata e sem equipamentos de segurança. Nas minas onde o trabalho não é escravo, crianças garimpeiras ganham entre US$ 1 e US$ 5 por dia, segundo relatório do Banco Mundial.

Além disso, os minérios são facilmente contrabandeados pelas porosas fronteiras africanas, evitando gastos com impostos. Em agosto de 2010, o governo congolês proibiu a comercialização dos materiais vindos de zonas de conflito, mas seus militares continuam sendo subornados para fazer vista grossa. Também dificulta a fiscalização o fato de que, ao saírem da África, os minérios são misturados em fornalhas asiáticas com materiais de todo o planeta e se tornam impossíveis de serem rastreados. É dessas fundições que os fabricantes de eletrônicos compram matéria-prima para fazer os gadgets.

Em junho de 2010, o site da revista americana Wired publicou uma conversa inusitada via e-mail entre Steve Jobs e um consumidor preocupado com a origem dos minérios usados para produzir o iPhone. O fundador da Apple afirmou que seus fornecedores apresentam uma certificação por escrito garantindo a origem limpa dos materiais, mas que, ‘honestamente’, a Apple não sabe a procedência real dos minérios. ‘Na verdade, a cadeia de fornecimento desses materiais é bem mais clara do que as empresas acabam informando aos consumidores’, diz John Prendergast, ativista do Enough Project.”

Estes são alguns trechos de uma reportagem de Felipe Pontes, publicada na edição de abril de 2011 da revista Galileu.

Apesar de não apresentar toda a reportagem, a postagem já ficou extensa, portanto, não me estenderei na minha opinião. Mas não posso deixar de citar aqui algo dito por Roberto Assagioli em seu livro O Ato da Vontade, publicado em 1973.

“Se um homem de uma civilização anterior à nossa – um grego da Antiguidade, digamos, ou um romano – aparecesse de súbito entre os seres humanos do presente, suas primeiras impressões o levariam a considerá-los uma raça de mágicos, de semideuses. Mas fosse um Platão ou um Marco Aurélio e se recusasse a ficar deslumbrado ante as maravilhas materiais criadas pela tecnologia avançada e examinasse a condição humana com mais cuidado, suas primeiras impressões dariam lugar a uma grande consternação.

Notaria logo que o homem, não obstante o imponente grau de domínio sobre a natureza, possui um controle muito limitado sobre o seu interior. Perceberia que esse mágico moderno, capaz de descer ao fundo do oceano e de projetar-se até a lua, é, em larga medida, ignorante do que se passa nas profundezas do próprio inconsciente e incapaz de se elevar aos luminosos níveis da supraconsciência, tornando-se cônscio de seu próprio self. Verificaria que esse pretenso semideus que controla grandes forças elétricas com o mover de um dedo e inunda o ar de sons e imagens para divertimento de milhões de pessoas - é incapaz de lidar com as próprias emoções, impulsos e desejos.”

Um Platão ou um Marco Aurélio verificaria que o homem continua achando natural que os miseráveis morram para que os mais favorecidos se divirtam. Em sua época, eles morriam em arenas diante dos olhos de espectadores. Hoje, morrem em minas sem o testemunho de quem se diverte às custas de seu sacrifício. “O que os olhos não veem o coração não sente”, não é mesmo?

Um comentário:

Michelito disse...

Guedes,
Infelizmente muitas pessoas não tem consciência que o custo para fabricação de um determinado produto é muito maior do que o registrado nas demonstrações contábeis e que as empresas e os sócios, só visam o lucro sem se importar com os impactos gerados para toda sociedade.
Estamos deteriorando o nosso planeta e explorando nossos semelhantes, isso é no mínimo degradante.
Será que vale a pena todo esse desenvolvimento? E a que custo?