Espremido em um corredor atrás do palco ("meu camarim está um gelo", explica), o sambista Neguinho da Beija-Flor esperava a hora do desfile da escola Acadêmicos do Tatuapé, que homenageava a agremiação carioca Beija-Flor de Nilópolis.Folha – A cantora Beth Carvalho diz que, dependentes de patrocinadores, as escolas hoje fazem enredo até sobre iogurte. Você concorda?Neguinho da Beija-Flor – As coisas mudaram bastante. Não se faz mais samba-enredo como antigamente. Hoje tem samba de escritório, de condomínio. Vários compositores compõem para diversas escolas. Antigamente era só a ala dos componentes de cada escola que fazia [o enredo]. O samba-enredo perdeu qualidade, sim. A Beth tem razão!Mas patrocínio é necessário.Infelizmente hoje, devido ao crescimento do Carnaval, é. Aí, o que pintar é lucro. Já pensou quando a marca de papel higiênico vier com patrocínio de R$ 20 milhões? A escola vai ter que falar de papel higiênico!Como você lida com isso?Eu não sou mais compositor de samba-enredo por coisas assim. Hoje, pra você ganhar com um samba-enredo, tem de ter mais de cinco, seis parceiros. Eu ganhei quatro sozinhos na Beija-Flor. Agora eu parei!
O samba virou negócio?Sem dúvida! Os sambas antigos emplacavam. Os de hoje são passageiros, no ano seguinte ninguém lembra mais. Não tem mais a mesma graça pra mim. Hoje sou apenas interprete.
Esta é a íntegra de uma reportagem-entrevista de
Mônica Bergamo publicada na edição de 7 de fevereiro de 2016 do jornal Folha
de S.Paulo.
Muito mais do que o título de um antigo
programa televisivo, "Topa tudo por dinheiro" é o lema de vida
adotado, consciente ou inconscientemente, pela enorme maioria dos integrantes
da dita espécie inteligente do universo.
"Na realidade, o dinheiro é um grande tóxico da atualidade, vicia sem que as pessoas se apercebam, justifica-se pela criação de riqueza material, solapa as riquezas intangíveis, sejam intelectuais ou emocionais".
As palavras acima são de Luiz Roberto Londres,
poeta, filósofo e acima de tudo médico. Médico autor de alguns livros dentre
eles Sintomas de uma Época: Quando o Ser
Humano Se Torna um Objeto. Sugestivo, não? Médico autor de artigos
publicados em jornais e revistas dentre eles aquele do qual extraí as palavras
acima. Artigo publicado na edição de 26 de maio de 2003 do Jornal do Brasil com o título 'Time
is life'. Artigo no qual, interpretando o aforismo - "time is money" -, criado por Benjamin Franklin em 1748, quando
Franklin tinha 42 anos, Luiz Roberto conclui que, para o autor da frase "time is money", a verdade
vivida foi outra: "time is life".
Para quem quiser ler o referido artigo, aviso
que está previsto para o próximo mês de março o seu espalhamento pelo blog espalhandoideias.blogspot.com.
A pergunta inicial da entrevista é sobre a
concordância ou não, de um famoso compositor de samba-enredo, sobre a opinião
de uma famosa cantora e sambista que condena a dependência que as escolas de
samba passaram a ter da existência de quem as patrocine. E diante da
concordância do entrevistado, o que diz a entrevistadora? Diz "Que o
patrocínio é necessário". E aí, é a vez do entrevistado concordar com a
afirmação da entrevistadora.
Triste civilização (sic) essa em que sobrevivemos,
não? Civilização onde se concorda que coisas nocivas sejam necessárias! Onde a
perda de qualidade é aceita de forma resignada. "O samba-enredo perdeu
qualidade, sim", concorda o compositor, ou pior, o ex-compositor, como ele
mesmo afirma ao responder a pergunta: "O samba virou negócio?". "Sem
dúvida! (...) Hoje sou apenas intérprete".
Hoje ele é apenas intérprete, pois o que
fazia, digamos, com alma, hoje virou negócio, em um mundo onde tudo virou
negócio. Intérprete para representar as vontades e os interesses de quem lhe
paga. Afinal, como diz uma conhecida frase também transformada em lema de vida
por uma imensa maioria, "Pagando bem, que mal tem?". Frase onde a
finalidade do "bem" é simplesmente rimar com o "tem", pois,
na verdade, cada vez mais a maioria das pessoas vende-se por cada vez menos. E
neste mundo onde tudo virou negócio, um imenso contingente de intérpretes segue
resignadamente pela vida a mercê de patrocinadores e / ou investidores.
Triste civilização onde, em última análise, a
própria (ou seria imprópria) sobrevivência de pessoas, de instituições, e até
mesmo de países, passou a depender da existência de patrocinadores e / ou
investidores. Vocês conseguem sentir-se bem ouvindo repórteres afirmarem que
nas condições em que o vosso (sic) país se encontra os investidores não têm
interesse em investir nele. Eu, não. Não, eu jamais aceitarei que a preservação
da vida de pessoas, de instituições que visem o bem, e até mesmo de países seja
algo dependente da existência de investidores.
Que raio de mundo é esse em que o bem estar da
população de qualquer região seja dependente do interesse de alguém nela investir?
Será que em momento algum o imenso contingente de prejudicados perceberá a nocividade
da existência de investidores e revoltar-se-á contra eles? Será que na hora em
que for proposto pagar para o samba falar de papel higiênico, será o momento em
que dará merda? O momento em que, finalmente, ocorrerá a revolta contra a
nocividade da existência de patrocinadores e / ou investidores?
E prosseguindo com os "será?" eu
recorro àquela linda música da Legião
Urbana. "Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que
tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer?" Vencer a nossa
dependência daquele que, segundo o entender de Luiz Roberto Londres, é um
grande tóxico da atualidade: o dinheiro. Vencer a nossa adesão àquele lema
adotado pela maioria da dita espécie inteligente do universo. O deplorável lema
"Topa tudo por dinheiro". Vencer a nossa lamentável resignação em
prosseguir pela vida atuando como intérpretes de enredos feitos por
patrocinadores, em vez nos dispormos a escrever o nosso próprio enredo.
E para encerrar esta já longa postagem seguem
duas frases de James Baldwin (1924 – 1987), escritor e ativista americano que, no meu entender, têm tudo a ver com a última frase do parágrafo anterior.
"Nem tudo que se enfrenta pode ser modificado, mas nada pode ser modificado até que seja enfrentado."
"Somos responsáveis pelo mundo no qual nos encontramos, pelo simples fato de que somos a única força consciente capaz de transformá-lo."
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