“Como o ato de mentir pode acabar fazendo parte da rotina de trabalho
Quando estagiava na Defensoria Pública estadual, o então estudante de direito M.C. por semanas a fio observou um velhinho, de seus 70 anos, que se despencava do Estácio até o Centro a pé, atrás de um parecer sobre seu processo. Um dia, perguntou aos colegas qual era a história ali. O senhorzinho, responderam, ganhara uma causa, mas como o réu não tinha bens em seu nome, nada ia levar: não havia o que arrendar para o pagamento. Só que a equipe não enfrentava a situação – não lhe contava a verdade. M.C. contou. E virou herói do velhinho, que até voltou à Defensoria uma vez mais, para presenteá-lo com docinhos.
O caso é só um, entre tantos, que mostram como o ato de mentir faz parte do dia a dia de trabalho. Em enquete feita na semana passada pelo site do Boa Chance – perguntando que profissionais mais mentem no exercício de suas funções – a maioria dos leitores (41%) respondeu advogados, seguidos por vendedores, jornalistas e assistentes de médicos.
O resultado reforça revelação de pesquisa realizada pelo psicólogo Jerry Jellison, da Universidade do Sul da Califórnia, Estados Unidos (...) Comprovou ainda que ao longo do dia uma pessoa contribui com ao menos uma dúzia de inverdades.
No caso da mentira no trabalho não estamos falando das sociais, daquelas que todo mundo conta para se livrar de situações embaraçosas. O jogo aqui é esconder a verdade para conquistar um cliente, surpreender o chefe, desfazer um erro ou – no caso do nosso senhorzinho – camuflar possíveis fragilidades.
- As pessoas mentem para tirar alguma vantagem ou encobrir deficiências que, imaginam, não serão toleradas. É um comportamento nocivo, pouco sustentável a médio e longo prazos.
Segundo a psicóloga Marisa Lobo, autora do livro ‘Por que as pessoas mentem?’, publicado pela Arte Editorial, não importa qual é a área de atuação do profissional: a competitividade seria o principal estímulo para os profissionais mentirem no ambiente de trabalho.- Elas têm se sentido mais pressionadas. A situação piora entre quem não está preparado para o mercado ou não internalizou questões éticas da profissão – diz Marisa.”
Estes são trechos de uma reportagem de Paula Dias, publicada no caderno Boa Chance do jornal O Globo na edição de 3 de abril de 2011.
A reportagem focaliza a mentira no trabalho e seu efeito nocivo no âmbito profissional, mas, na minha opinião, sua nocividade vai mais além, pois as atividades profissionais produzem efeitos na sociedade. Dá para acreditar na construção de uma sociedade justa sabendo que os profissionais que cuidam da justiça ocupam o topo no ranking dos mentirosos? Prefiro acreditar que sim, pois, segundo a reportagem, ainda existem estudantes de direito dispostos a falar a verdade.
Mas se alguém pensa que construir uma sociedade justa compete, exclusivamente, aos profissionais ligados à justiça, está mentindo para si mesmo. Afinal, uma sociedade é construída, ou destruída, pelas atividades profissionais e pelas ações sociais e educacionais de todos os seus componentes. Portanto, vamos esquecer essa história de ranking e lembrar de fazer a nossa parte.
É mentirosa a afirmação de que é possível separar a pessoa do profissional, e um profissional mentiroso acaba tornando-se um mentiroso profissional. Mas é verdade que uma civilização composta de mentirosos jamais será uma verdadeira civilização. Portanto, é imprescindível refletir sobre a sociedade que pretendemos construir e agir em conformidade com o que desejamos. Senão, basta fazer nada e prosseguir sobrevivendo segundo o lema me engana que eu gosto.
2 comentários:
Guedes,
Na verdade nós vivemos em um mundo de mentiras, as vezes tenho dificuldade até em separar o que é história e o que é estória. A única coisa que eu posso ter certeza que é verdade é aquilo que eu vi, presenciei e tenho algum conhecimento. Qualquer profissão que tem como base a informação pode facilmente "criar" um ambiente de acordo com os seus interesses. O que falta é ética aos nossos profissionais, afinal pelo que eu me recordo ética é ensianada apenas na faculdade, quando isso deveria ser ensinado em casa e durante toda a vida escolar.
Amigo Michelito,
Coincidentemente, a próxima postagem deste blog (será publicada hoje) é intitulada “As crianças notam contradições éticas”.
O final do seu comentário tem tudo a ver com coisas ditas na postagem. O trecho a seguir é uma junção de algumas delas.
Ética são costumes, e costumes são moldados pelas influências sociais. Portanto, a ética é cotidiana, tem de ser trabalhada o tempo inteiro. Não se trata de criar uma disciplina específica para isso.
Abraços,
Guedes
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