quarta-feira, 11 de março de 2015

Piloto cancela voo entre BH e Rio alegando cansaço físico extremo

Por conta do mau tempo, tripulação ultrapassou carga horária; Gol diz que a atitude do comandante foi correta
Por volta das 23h da última segunda-feira, depois de enfrentar um atraso de quase três horas, um grupo de 115 passageiros embarcou no voo G3-2125, da Gol, que decolaria do aeroporto de Confins, na região metropolitana de Belo Horizonte, com destino ao aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. Naquele dia, o mau tempo na capital fluminense havia provocado uma espécie de efeito cascata, atrasando diversas viagens. Por volta da meia-noite, com a aeronave ainda em solo, o piloto responsável pelo voo assumiu o sistema interno de comunicação do avião e, alegando cansaço extremo, anunciou que estava cancelando a viagem.
- Eu vou ser sincero com todos vocês - disse o piloto, cujo nome não foi revelado. - Eu não tenho nem mais reflexos. Eu não tenho mais condições físicas. A legislação brasileira é bem clara: existe um limite de jornada possível para os pilotos e os comissários.
Um vídeo deste momento foi gravado por um dos passageiros e divulgado pelo "Jornal da Band". Nele, no entanto, também não há informações sobre a identidade do piloto ou de sua equipe de trabalho.
Em nota enviada ao GLOBO, a assessoria de imprensa da Gol confirmou o episódio. Reconheceu que a tripulação que faria o voo G3-2125 do dia 24 de novembro "atingiu o limite da jornada de trabalho estabelecido pela regulamentação da profissão, devido a atrasos nas etapas voadas anteriormente, provocados pelas más condições meteorológicas que atingiram o Rio de Janeiro". No mesmo texto, a empresa elogiou a atitude do piloto, destacando que ele "decidiu corretamente interromper a jornada dos tripulantes a bordo, informando aos clientes sobre a regulamentação da categoria".
A Gol atesta que faz um monitoramento e um controle permanente das jornadas de trabalho de seus colaboradores e que também "desenvolve programas de gerenciamento de fadiga alinhados às melhores práticas da indústria da aviação mundial". Apesar disso, a companhia aérea não tinha nenhuma equipe mobilizada para realizar a substituição necessária no aeroporto de Confins, e o voo acabou sendo cancelado, provocando ainda mais transtornos.
A assessoria da Gol reforça que "ofereceu alimentação e hospedagem" e que "trabalhou incansavelmente para reacomodar os 115 clientes". De acordo com a empresa, o grupo deixou Minas Gerais com destino ao Rio de Janeiro com um atraso total de aproximadamente sete horas." Ainda na nota, a Gol "pede desculpas pelo desconforto causado e ressalta que eventuais alterações nos horários e trajetos de voos são procedimentos, ainda que indesejados, às vezes necessários às operações aéreas". Por fim, reitera que "preza pelos mais altos padrões de segurança, principal valor de sua política de gestão".
Esta é quase a íntegra de uma reportagem de Cristina Tardáguila, publicada na edição de 29 de novembro de 2014 do jornal O Globo.
"Piloto cancela voo entre BH e Rio alegando cansaço físico extremo". Uma notícia sinistra que pode ter evitado uma notícia sobre um sinistro. Um piloto que "diz que não tinha mais condições físicas nem mais reflexos", mas que, felizmente, ainda tinha bom senso. Uma companhia aérea "que atesta que faz um monitoramento e um controle permanente das jornadas de trabalho de seus colaboradores e que também 'desenvolve programas de gerenciamento de fadiga alinhados às melhores práticas da indústria da aviação mundial'", mas que "apesar disso, não tinha nenhuma equipe mobilizada para realizar a substituição necessária no aeroporto de Confins, e o voo acabou sendo cancelado, provocando mais transtornos". Ou seja, uma companhia aérea que atesta coisas que podem ser facilmente contestadas por um episódio envolvendo um de seus pilotos.
"A legislação brasileira é bem clara: existe um limite de jornada possível para os pilotos e os comissários." A legislação divina também é bem clara: existe um limite de jornada possível para os seres humanos. A ganância da classe empresarial também é bem clara: não existe limite possível para tal ganância. Ganância que leva empresas a quererem ter a quantidade mínima possível de colaboradores (adoro esta palavra!) trabalhando durante a máxima jornada de trabalho possível, e pela remuneração mínima possível.
"A assessoria da Gol reforça que 'trabalhou incansavelmente para reacomodar os 115 clientes'". Perceberam a afirmação: "a assessoria trabalhou incansavelmente." Aqui pode estar a explicação: segundo a assessoria colaboradores não se cansam. Incansavelmente! Que palavra interessante, não? Será que quem afirma ser possível trabalhar de forma incansável, mente? No meu entender, sim, e no de vocês?
Selecionei esta reportagem para este blog por que a prática de jornadas exaustivas de trabalho é algo que sempre me incomodou. Até porque é algo do qual também fui vítima durante a minha vida profissional. Em sua edição de 6 de agosto de 2006, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma reportagem que certamente seria espalhada por este blog, se naquela época ele já existisse. Reportagem da qual cito aqui o título e dois subtítulos, respectivamente. "Médicos residentes estão no limite", "Jornada exaustiva, falta de financiamento e orientação colocam sistema em xeque; residentes podem fazer greve" e "Plantões seguidos minam capacidade de raciocínio".
"Plantões seguidos minam capacidade de raciocínio"! E capacidade de raciocínio minada pode colocar vidas em risco, diz uma professora da USP e conselheira do Conselho Regional de Medicina de São Paulo entrevistada pela autora da referida reportagem. Capacidade de raciocínio que será sempre minada por toda e qualquer longa jornada de trabalho, e não apenas em plantões seguidos feitos por profissionais da área médica. A diferença é que não é em todas as profissões que o risco de vida é imediato. Mas em qualquer uma delas, esse é um risco que, a longo ou médio prazo possível, será sempre possível. Ou seja, aquela velha história de que trabalho não mata é algo é que convém questionar, ok? Querem uma sugestão? Procurem saber o que é karoshi. Considerando que esta postagem já ficou longa, ficarei por aqui.

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