sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Você joga com a história dos outros e depois sofre com as consequências

Fotógrafo brasileiro, que lança livro sobre o café, culpa intervenções militares europeias e norte-americana pela atual crise dos refugiados
A questão dos refugiados, abordada em "Êxodos", voltou com força. Como olha o assunto a partir do que já testemunhou?
É um drama sério. Hoje fala-se muito sobre a questão porque está chegando na porta dos grandes países que detêm grande concentração financeira do mundo, que são o "berço" da civilização. Mas o problema é grave há dezenas de anos. Como essas pessoas estão chegando à Europa, parece que a história é nova, mas não é nova, não. É a história da globalização. Quando conheci o Iraque, era um lugar rico, onde as pessoas trabalhavam, tinham residências, viviam em paz. Um país imaginou que lá havia armas de destruição em massa e o trouxe para a idade da pedra.
No Iraque hoje ninguém tem casa, bomba explode todos os dias, é um país fisicamente destruído. Para onde você quer que esse povo vá? Olha o que aconteceu na Líbia: era uma estabilidade, de uma ditadura, mas os líbios viviam de maneira razoável. Tomou-se a decisão de botar o [ditador líbio] Gadaffi para fora. Bombardeios, tropas francesas e britânicas entraram com os rebeldes, mas eles não tinham ideia da casa de marimbondo em que estavam mexendo. De onde saem milhares de refugiados que hoje atravessam em direção à Itália? Você joga com a história dos outros e depois sofre as consequências.
Isso dá margem para defender a manutenção de ditaduras.
A intervenção no Iraque não foi para acabar com a ditadura. Foi por petróleo. Na Líbia também. Eu não sou a favor de ditadura nenhuma, hein? Mas acho que esse tipo de intervenção tem que ser muito bem calculada, porque as consequências podem ser brutais. Você não pode aceitar que a violência seja impressa numa realidade histórica qualquer, de cima para baixo. Você destrói tudo.
Estas são duas das oito perguntas de uma reportagem-entrevista de Daigo Oliva, publicada na edição de 4 de outubro de 2015 do jornal Folha de S.Paulo, na qual o entrevistado é o famoso fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado.
"Você joga com a história dos outros e depois sofre as consequências."! Inventa pretextos para intervir militarmente em outros países com a finalidade de apoderar-se de riquezas naturais neles existentes e transforma-os em verdadeiros infernos onde a simples sobrevivência de seus habitantes fica inviabilizada. E diante do desespero de refugiados (quem foge de guerras é refugiado, não imigrante) que tentam fugir para algum lugar onde haja alguma esperança de sobrevivência ainda consegue ter a desfaçatez de achar que toda a desgraça que lhes é infligida foi causada por eles próprios, portanto é problema exclusivamente deles. Mexe em casa de marimbondo, para usar expressão de Sebastião Salgado, e quando os marimbondos reagem acha que nada tem a ver com o a reação que provocou. O que será isso? Cinismo ou falta de noção? O que vocês acham?
E o que faz o entrevistador diante da lúcida resposta de Sebastião Salgado? Tenta colocá-lo em uma saia justa insinuando que sua resposta pode levá-lo a ser visto como simpatizante de ditaduras. Lamentável! Não, o motivo das intervenções não é acabar com ditaduras, e sim apoderar-se de petróleo, como diz Sebastião salgado. E ao falar em simpatia por ditaduras, lembro de dois artigos publicados na Folha de S.Paulo, na coluna do laureado jornalista Clóvis Rossi. Artigos dois quais selecionei alguns trechos que, no meu entender, têm tudo a ver com as respostas de Sebastião Salgado apresentadas acima.
Do primeiro deles, publicado em 10 de outubro de 2001 e intitulado "Fdps", novos e velhos, selecionei os seguintes trechos.
A política externa norte-americana – e da maioria dos países ricos – tem um pecado mortal: raramente incorporou aos seus produtos de exportação os valores (democracia, liberdade, direitos civis) que, de amplo uso interno, fizeram e fazem a grandeza da América. A frase que poderia ser um símbolo da política externa norte-americana é do presidente Franklin Delano Roosevelt (1933/45) sobre o ditador nicaragüense Anastasio Somoza Garcia: "É um f.d.p., mas é NOSSO fdp".
Pois é, os EUA plantaram e cevaram "fdps" mundo afora. (...) O mundo certamente ficaria bem melhor no dia em que os Estados Unidos decidissem só aceitar no clube de aliados os países que praticam valores democráticos.
Do segundo, publicado em 6 de setembro de 2011 e intitulado Do lado errado da história, selecionei os seguintes trechos.
Os Estados Unidos têm uma longa história de cooperar com tiranos como o ditador líbio, Muammar Gaddafi
Você tem todo o direito – até o dever – de indignar-se com a revelação de que os serviços secretos dos Estados Unidos e do Reino Unido cooperaram com o ditador Muammar Gaddafi. Só não tem o direito de se surpreender. Os Estados Unidos, fora de suas fronteiras, ficaram incontáveis vezes do lado errado da história, para usar expressão do presidente Barack Obama.
Na América Latina, então, o desempenho de Washington é realmente terrível. Quase dá para tomar como emblemática da ação norte-americana no subcontinente a frase atribuída ao então presidente Franklin Delano Roosevelt sobre o ditador nicaragüense Anastasio Somoza: "Ele pode ser um f.da.p., mas é nosso f.da.p.".
Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos cansaram-se de desestabilizar governos absolutamente legítimos, mas inconvenientes do ponto de vista ideológico, para instalar criminosos da estirpe dos Somoza. A lista é tão grande que me dispenso de reproduzi-la aqui. Basta mencionar o Chile de Allende, talvez o caso mais bem documentado nos anais do próprio Senado norte-americano de envolvimento da CIA em uma conspiração. Acabou levando ao poder o general Augusto Pinochet, cuja única diferença com Gaddafi é que não falava árabe nem se alojava numa tenda de luxo em viagens ao exterior. No mais, mereceria de qualquer presidente norte-americano do período a mesma descrição que Roosevelt aplicou a Somoza.
A Guerra Fria, primeiro, e a "guerra contra o terrorismo", depois, serviram como explicações para alianças com o lado errado da história. Pegue-se o Afeganistão: os Estados Unidos ajudaram, até com armas, os talebans quando lutavam contra a ocupação soviética. Os talebans ganharam, e Washington se viu compelida a aliar-se ao ditador paquistanês Pervez Musharraf para combater o grupo fundamentalista, que dava abrigo a Osama Bin Laden e a Al Qaeda.
(...) Talvez seja supina ingenuidade pretender que a política externa de um país seja coerente com os princípios que defende – e pratica – internamente. Mas tem se revelado alto demais o custo – financeiro, moral e de imagem – de aliar-se com regularidade a quem viola sistematicamente tais princípios.
Diante dos artigos apresentados acima, será que a lúcida resposta de Sebastião Salgado merece do entrevistador a insinuação de que ela estaria "dando margem para defender a manutenção de ditaduras". Quem e / ou o que dá margem para a manutenção de ditaduras?
"Você joga com a história dos outros e depois sofre com as consequências" é uma afirmação que me faz lembrar uma frase de uma bela canção da Legião Urbana: "Nos perderemos entre monstros da nossa própria criação". Canção que prossegue assim: Serão noites inteiras talvez por medo da escuridão / Ficaremos acordados imaginando alguma solução / Pra que o nosso egoísmo não destrua nosso "planetão", digo, coração.

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