terça-feira, 23 de agosto de 2016

O desafio da tecnologia é ser útil

No Lions Innovation, antropóloga diz que internet das coisas ainda não ganhou escala porque 'ninguém precisa de uma geladeira falante'
Uma geladeira que fala é uma das propostas da internet das coisas, que vem sendo vendida como a "próxima fronteira" do mundo da tecnologia. Na visão da antropóloga digital Amber Case – eleita como uma das mulheres mais influentes do setor pela revista 'Fast Company' -, a proposta de conectar os aparelhos mais mundanos da vida diária pode não decolar. E por um só motivo: o ser humano sabe quando uma banana está estragada e não precisa que a tecnologia faça isso por ele.
Ao participar do Lions Innovation, evento do Cannes Lions – Festival Internacional de Criatividade dedicado à tecnologia, Amber lembrou que muitos dos novos aparelhos que estão sendo desenvolvidos não levam em conta que o usuário está farto de ser interrompido. O Estadão é o representante oficial de Cannes Lions no País.
Ou seja: se a pessoa já recebe alertas de e-mail, WhatsApp e Facebook no telefone celular, para que ela vai querer um relógio supostamente inteligente para repetir todas essas mesmas informações? "É preciso reduzir a quantidade de informação", propõe. "A quantidade ideal de tecnologia na vida de uma pessoa é a mínima necessária."
Uma das propostas de Amber para mudar o quadro e salvar a internet das coisas de seu fracasso é a aplicação do "design calmo" aos produtos que forem lançados nos próximos anos. Entre as inspirações para as novas invenções, ela propõe o exemplo do Roomba, o aspirador de pó esférico, que emite apenas um sinal quando termina de limpar um cômodo.
Eficiência. Para se comunicar com o ser humano, um produto não precisa falar: ela cita a chaleira que apita quando a água ferve como exemplo de "design calmo", pois cumpre sua função sem exigir quase nenhuma atenção do usuário. Para provar que a chaleira é um objeto eficiente, ela pôs uma venda em um participante na palestra e pediu para que, sem enxergar, ele dissesse quando seu chá estivesse pronto. Ele ouviu o apito e levantou a mão.
A tecnologia desnecessária também é uma fonte de frustração. Por isso, segundo Amber, a tendência é que as pessoas consigam separar mais rapidamente as inovações reais das descartáveis – que só vão ser fonte de perda de tempo e dinheiro. "Não existe meio termo na tecnologia: ou se usa algo ou não se usa. E a gente se sente culpado por ter gasto US$ 300 em algo inútil."
Estes são alguns trechos de uma reportagem de Fernando Scheller publicada na edição de 22 de junho de 2016 do jornal O Estado de S. Paulo.
"O desafio da tecnologia é ser útil", diz o título de uma reportagem calcada em opiniões da antropóloga digital Amber Case. Considerando que desafio é algo que requer um proponente, a afirmação que intitula esta postagem provoca-me as seguintes indagações. Tal desafio já foi proposto? A quem cabe propô-lo? A quem desenvolve produtos e serviços usando a tecnologia disponível ou aos consumidores de tais produtos e serviços? Será que, da parte dos desenvolvedores, o interesse em propor tal desafio? Para a última indagação, minha resposta é não, e eu explico.
Em uma civilização (sic) onde tudo foi transformado em negócio e onde o ter é mais importante que o ser, o principal interesse de quem vende qualquer coisa não é que aquilo que vende seja útil, e sim que desperte nos consumidores a vontade de -la. E refletindo sobre o desafio que intitula esta postagem, ainda do ponto de vista de quem vende, digo mais. Em uma civilização assolada por uma insana competitividade, para a maioria daqueles que conseguem comprar qualquer coisa que o mercado lhes oferece, mais do que questionar se o produto ou serviço é útil, o que importa é a sensação de sentir-se superior àqueles que não conseguem comprar. Sensação que é incutida nas crianças desde tenra idade como demonstra o exemplo apresentado a seguir.
Em 1992, era exibida na televisão uma propaganda de tesourinhas da marca Mundial onde um menino, mostrando uma tesoura escolar com uma estampa do Mickey Mouse, repetia cinco vezes a seguinte frase: "Eu tenho, você não tem...". Uma propaganda que, de alguma forma, sugere que quem possui uma determinada tesourinha é superior a quem não a possui. Concordando com a antropóloga quando diz que "ninguém precisa de uma geladeira falante", considero a produção de geladeiras falantes algo semelhante à produção de tesourinhas com uma estampa do Mickey Mouse. Possuir uma geladeira falante configura um novo exemplo do "Eu tenho, você não tem...". Até quando o desejo de ter uma coisa prevalecerá sobre o questionamento sobre o quão útil tal coisa pode ser?
Do que é dito na reportagem, destaco uma afirmação de Amber Case que considero preciosa: "A quantidade ideal de tecnologia na vida de uma pessoa é a mínima necessária.". E a partir dessa afirmação elaboro uma afirmação que, no meu entender, define o verdadeiro desafio que a autodenominada espécie inteligente terá que enfrentar, e superar, caso ainda almeje tirar o melhor proveito do estonteante desenvolvimento tecnológico com o qual ela se depara: "O desafio da espécie inteligente do universo é enxergar que "A quantidade ideal de tecnologia na vida de uma pessoa é a mínima necessária.".
Por que digo ser esse o verdadeiro desafio? Porque ele antecede o desafio citado no título da reportagem. Por quê? Porque só após enxergarmos que "A quantidade ideal de tecnologia na vida de uma pessoa é a mínima necessária." é que estaremos aptos a exigir dos desenvolvedores de tecnologia que ela (a tecnologia) nos seja útil. Sim, obter qualquer coisa que nos seja útil é algo que só é possível se nós tivermos disposição para exigi-la. Caso contrário a utilidade será apenas para aqueles que ganham dinheiro vendendo tal coisa. Compreendido?
E ao falar em enxergar, me vem à mente a seguinte afirmação feita por Gunther Anders, filósofo alemão, em 1957: "O fascínio pelo progresso nos faz cegos para o apocalipse.". Considerando o fascínio exercido pela tecnologia e o fato de, hoje, equivocadamente, progresso e tecnologia serem considerados a mesma coisa, entendo que a afirmação do filósofo pode ser reescrita assim: "O fascínio pela tecnologia nos faz cegos para o apocalipse." E aí? Estão dispostos a enfrentar o verdadeiro desafio?

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